ESQUERDA
E DIREITA: HISTÓRIA
Escrito por Alessandro Nicoli de Mattos/Portal Politize!
Para se entender como os termos “esquerda”
e “direita” entraram no repertório político, é necessário saber como tudo
começou. Após a revolução francesa (1789), os parlamentos formados por toda a
França entre 1789 e 1799 eram organizados de forma que os representantes da
aristocracia se sentavam à direita e os comuns à esquerda do orador. Os
aristocratas defendiam os privilégios da aristocracia, da igreja e a sociedade
de classes que existia no antigo regime, ou seja, eram conservadores no sentido
de manter as estruturas sociais vigentes até então. Já os que se sentavam à
esquerda representavam os interesses da burguesia, a classe que estava pagando
a conta da aristocracia e da igreja, mas que até aquele momento não tinha poder
político. Entre os seus interesses estavam o republicanismo, o secularismo e o
livre mercado, que iam ao encontro de seus objetivos para fortalecer o comércio
e retirar os privilégios das classes que até então dominavam a política.
Naquele contexto, trabalhadores, camponeses e pobres em geral não eram
representados nessas assembleias e a ideia de democracia ainda era bastante
restrita. Não deixa de ser irônico que os primeiros representantes da esquerda
tenham sido capitalistas burgueses!
Nesse momento da história, o foco da
discussão política estava na divisão de classes e nos privilégios econômicos e
políticos existentes, mas com o avanço do liberalismo político e o
reconhecimento da ideia de que todos os cidadãos devem ser iguais perante a
lei, esses antigos sistemas de classes, com direitos transferidos
hereditariamente, sucumbiram ou diminuíram de importância. Mesmo em sociedades
oficialmente classistas, como o Reino Unido, a nobreza teve os seus privilégios
tão esvaziados ao longo do século XX que hoje quase não constituem uma
vantagem.
(Entenda-se “classe” aqui como grupos que
possuem direitos e deveres diferentes perante a lei, como a nobreza ou o clero,
por exemplo, e não classes sociais do ponto de vista econômico.)
A política desta época ainda não tinha a
influência de ideias como o socialismo ou comunismo – Karl Marx (1818 – 1883)
nem havia nascido ainda. O capitalismo industrial ainda estava em sua infância
– lutando para substituir o capitalismo mercantilista – e os sindicatos de
operários urbanos estavam longe de surgir. Mas isto estava prestes a mudar. O
século XIX trouxe enormes avanços na industrialização, os centros urbanos
cresceram muito e o capitalismo liberal se desenvolveu. Foi um tempo de
profícua produção de ideologias dos mais diversos tipos, que teriam impactos
imensos no século seguinte. Uma das ideologias que tiveram mais influência no
cenário político foram o socialismo e o comunismo concebidos por Karl Marx, e
que serviram de base a muitos movimentos operários e ao surgimento dos
sindicatos urbanos. Com o passar do tempo o socialismo deu origem a diversas
vertentes, entre elas a social democracia. Nesse momento, o foco da discussão
política passou a ser as disputas entre o capital e a força de trabalho.
Em seguida, o século XX testemunhou o
sufrágio universal (ou seja, a ideia de que todos podem votar), a expansão de
outros setores da economia que não a indústria e o fortalecimento das
democracias liberais no mundo, inclusive das sociais democracias, que
equacionaram em parte as disputas entre capital e força de trabalho. A política
passou a ter como questões predominantes o papel do Estado na sociedade e na
economia e quais valores políticos devem ser promovidos, o que impacta
diretamente nas discussões de esquerda e direita.
VISÕES
DE MUNDO E DE NATUREZA HUMANA
Para entender o que esquerda e direita
representam, é necessário entender as bases filosóficas que explicam a visão de
mundo e sobre a natureza humana de cada lado do eixo. Embora seja impossível
determinar valores e políticas comuns a toda a esquerda e direita, pois cada
uma destas acolhe pensamentos muito distintos e até antagônicos entre si, é
possível traçar alguns pontos comuns sobre o entendimento de como o mundo e o
ser humano funcionam. Se o leitor entender estas diferenças filosóficas, poderá
identificar imediatamente políticas públicas, atitudes e retóricas alinhadas
com essas visões de mundo. Perceberá também que muitas das discussões e
desentendimentos políticos são antes de tudo um reflexo das diferenças de como
as pessoas enxergam, entendem e sentem o mundo e a sociedade.
O ponto de partida para entender essas
visões de mundo e sociedade é Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês que
viveu durante a guerra civil inglesa (1642-1651). Por ter vivido em um período
tumultuado da história inglesa, não é surpreendente que ele tenha defendido
governos absolutistas com governantes poderosos capazes de garantir a ordem e
resolver conflitos internos. Mas a grande novidade é que ele foi um dos
primeiros filósofos modernos a rejeitar a ideia de ordem social baseada na
doutrina cristã – comum na Idade Média – e procurar entendê-la e legitimar o
poder dos governantes de um ponto de vista racional. O resultado foi a sua
teoria do contrato social, um acordo tácito pelo qual os governados se submetem
ao poder do governante – abrem mão de parte de sua liberdade – em troca de
proteção e garantia de seus direitos e demais liberdades. Para ele, um governo
só é legítimo enquanto o governante cumpre o seu papel no contrato, caso
contrário o seu governo perde a legitimidade e os governados tem o direito de
substitui-lo.
Mas para chegar a essa ideia, Hobbes
filosofou sobre uma das questões mais difíceis e polêmicas para os pensadores
modernos e que até hoje é o ponto fundamental da discordância entre esquerda e
direita: qual a natureza da condição humana e do comportamento humano? Para
responder a essa questão, Hobbes imaginou como seria a condição do ser humano
no “estado de natureza”, uma situação teórica da humanidade antes da introdução
de estruturas sociais e instituições do Estado. Para Hobbes, a humanidade no
“estado da natureza” teria uma liberdade absoluta – sem restrições –, mas uma
vida de constante guerra entre seus pares, de miséria e caos. Para ele, a
natureza humana é intrinsecamente egoísta e o caráter humano é falho e
imutável.
Nesse cenário, as pessoas aceitam
submeter-se ao poder do Estado para usufruírem de suas vantagens, como a ordem,
a paz, a proteção à vida e à propriedade, mesmo que ao custo da perda de parte
de sua liberdade. Nessa visão de mundo baseada em Hobbes, não há instituições
ou ações políticas que sejam capazes de eliminar as imperfeições humanas ou
criar uma sociedade utópica. A melhoria da sociedade depende da evolução de
cada indivíduo que faz parte dela. O objetivo da política deve ser fazer o
possível para criar as condições para uma “vida boa” – não no sentido material
ou de riqueza, mas condições nas quais os indivíduos consigam viver de maneira
virtuosa, que não sejam obrigados a tomar atitudes imorais para poder
sobreviver. Essa é a visão de mundo e da natureza humana que fundamenta a
direita.
Quase um século depois, o filósofo suíço
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) propôs uma nova abordagem ao tema do contrato
social e uma definição totalmente oposta sobre a natureza humana. Rousseau
ainda não sabia, mas seria fonte de inspiração para a revolução francesa (1789)
e lançaria as bases filosóficas para o desenvolvimento da esquerda nos séculos
seguintes. Rousseau era originário da pacata e organizada cidade de Genebra e
talvez por isso tenha tido uma compreensão de mundo tão diferente de Hobbes.
Para Rousseau a humanidade no “estado da natureza” seria feliz, benevolente e
as pessoas viveriam em harmonia, guiadas por um sentimento de compaixão. As
pessoas não são inerentemente más, mas podem se tornar quando sujeitas a
governos e instituições ruins, especialmente a propriedade privada. Rousseau
fez críticas duras à propriedade privada, embora não tenha defendido aboli-la
completamente e sim distribui-la de maneira mais igualitária. Segundo sua
visão, a propriedade privada origina todas as divisões e desigualdades
existentes na sociedade. Essas divisões, desigualdades e instituições
imperfeitas criadas pelo homem seriam a origem dos vícios e defeitos de caráter
das pessoas, pois estas teriam desviado o ser humano de suas qualidades inatas.
Essa é a visão de mundo e da natureza humana que fundamenta a esquerda.
Rousseau também propôs uma teoria sobre o
contrato social que não o considera originário do medo e da necessidade de
proteção, mas sim como um meio para melhorar a existência humana. Para
Rousseau, quando as leis são criadas por aqueles que se sujeitam a elas, podem
tornar-se uma extensão e melhoria da liberdade existente no “estado de
natureza”. Essa visão contrasta com a de Hobbes, que via nas leis uma restrição
necessária à liberdade, que só poderia ser plena no “estado de natureza”. Mas,
para o contrato social rousseauniano funcionar, é necessário que as pessoas
sejam iguais. Para Rousseau, liberdade e igualdade caminham lado a lado e não
há conflito entre esses valores. Essa é uma ideia fundamental para a esquerda,
que embora apresente inúmeras variações de doutrinas e ideologias, tem na
igualdade o valor político que define e une todas elas.
Uma conclusão inevitável dessa visão de
Rousseau, que traz uma diferença clara de esquerda e direita, é que o Estado e
as instituições podem modelar a sociedade e o comportamento humano, e,
portanto, instituições perfeitas poderiam em teoria levar a uma sociedade
perfeita e capaz de evitar a degradação do caráter humano naturalmente
benevolente. Nessa concepção, a ação política e o Estado podem e devem ser
usados como meios para mudar a sociedade. Essa visão serviu de base filosófica
para o desenvolvimento de ideias que pretendem reformar a sociedade para o bem
comum por meio da política – às vezes chamadas de reformistas –, incluindo as
doutrinas desenvolvidas por Karl Marx.
As visões de mundo de Hobbes e Rousseau
são antagônicas e representam os pontos extremos do entendimento da natureza
humana. Para um lado, a condição natural do homem é de guerra e caos, os
indivíduos são egoístas e motivados somente pelo auto interesse. Para o outro,
essa condição é de harmonia e benevolência, as pessoas são altruístas e podem
ser motivadas por interesses comunitários. Entre esses dois extremos, outras
visões de mundo são possíveis e foram exploradas por outros filósofos.
Na prática, a experiência tende a mostrar
que a natureza humana está em algum lugar entre estes dois extremos. Nem todas
as ações humanas podem ser explicadas pelo egoísmo, mas parecem muito mais
motivadas pelo altruísmo, pela lealdade, pela gratidão ou por alguma convicção
moral. Afinal, a mesma pessoa que se preocupa em promover seus próprios
interesses no dia a dia pode colocar sua vida em risco para salvar alguém de
uma inundação ou de um incêndio, ou uma pessoa de negócios pode dedicar parte
do seu tempo e dinheiro para ações de interesse social, ou um voluntário usa o
tempo de seu final de semana para trabalhar num asilo de idosos.
Essas visões diferentes de mundo levam a
diferenças fundamentais na abordagem da política partidária de esquerda e
direita. A esquerda tem um caráter eminentemente reformista e acredita no uso
da política e do Estado como a maneira mais apropriada para melhorar a
sociedade – ou seja, a filosofia e a política devem alterar a realidade. Por
isso, a esquerda desenvolve como características na sua prática política uma
grande militância e uma forte burocracia partidária. Já a direita enxerga que a
melhoria da sociedade se dá pela melhoria da qualidade dos indivíduos, o que é
um objetivo essencialmente pessoal e não político.
Para a direita, a política é um meio de
garantir a ordem e a liberdade, criando um ambiente benigno no qual as pessoas
possam exercitar as suas virtudes. A política não é vista como uma ferramenta
para reformar a sociedade ou alterar a natureza do ser humano, ou seja, a
filosofia e a política devem refletir a realidade. Por este motivo, a direita
costuma ser menos militante quando comparada aos movimentos de esquerda.
É possível perceber estas visões de mundo
refletidas em várias posições políticas de esquerda e direita. Uma das mais
evidentes é a atitude com relação ao crime e à segurança pública. Para a
direita, o crime, os vícios e as mazelas da sociedade são originários das
falhas de caráter e da natureza imperfeita do ser humano. Por essas falhas
serem pessoais, todos os indivíduos são responsáveis por suas decisões e ações
e devem arcar com as suas consequências. Para a esquerda esses mesmos fenômenos
são fruto de instituições ruins, das desigualdades e das condições sociais
adversas impostas aos indivíduos, e não do caráter intrinsicamente benevolente
do ser humano. Por essas falhas terem um forte componente ambiental e social,
não é justo atribuir aos indivíduos toda a culpa e consequências de suas ações,
principalmente àqueles indivíduos de origem social vulnerável, como é comum nos
casos da criminalidade urbana. Essas diferentes visões levam a reações
distintas sobre a mesma questão: enquanto a direita pode parecer excessivamente
dura e intolerante, a esquerda é criticada por parecer muito leniente e
paternalista.
Outras questões em que as divergências de
esquerda e direita ficam claras são a promoção do valor da igualdade, os
programas sociais, as políticas de ações afirmativas, os movimentos sociais,
entre muitas outras. As polêmicas em torno desses temas são, em última análise,
o reflexo das diferentes visões e entendimentos do mundo, da política e do
Estado.
Fonte: http://www.politize.com.br
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