GREVE
DOS CAMINHONEIROS
Por
que uma crise de abastecimento em tão poucos dias?
Por
Elisabetta Recine
Maio
30, 2018
Milhares de toneladas de alimentos
perdidas, escassez de comida, disparada de preços. A paralisação dos
caminhoneiros, iniciada na semana passada, e suas consequências, quase que
imediatas, em termos de abastecimento é uma oportunidade para refletirmos sobre
como organizamos os processos de produção e comercialização de alimentos no
Brasil.
Na conta dos produtos perecíveis perdidos
entram frutas, verduras, legumes, laticínios e carnes. Também estão sendo
enfrentadas dificuldades para alimentar aves, suínos e bovinos, uma vez que o
movimento dos caminhoneiros compromete o acesso a insumos. O clima de
insegurança alimentar vivido nos últimos dias, entretanto, está longe de
acabar. Após a normalização do transporte no País, a crise gerada pelo
desabastecimento trará efeitos na inflação dos preços dos alimentos, decorrente
da instabilidade provocada por um modelo de produção que privilegia a grande
produção e as grandes redes varejistas. O sistema alimentar hegemônico se
organiza a partir da lógica do circuito longo de produção e consumo. No
circuito longo, a produção em grande escala está diretamente associada a um
sistema complexo de logística que geralmente envolve percursos extensos e
concentração do varejo em grandes unidades.
Sem consertar as causas, não há como
tratar as consequências. A insegurança no abastecimento gerada pelo movimento
dos caminhoneiros demonstrou a urgência da adoção de uma política de
abastecimento alimentar capilarizada que fortaleça os circuitos curtos de
produção e consumo. Os circuitos curtos estabelecem o contato, com poucas
etapas, algumas vezes nenhuma entre produtor e consumidor. A comercialização é
feita em feiras, lojas de associação de produtores, venda direta para grupos
organizados, cestas entregues em domicílio, entre outras formas de
comercialização. Permitem reforçar o aspecto público e a valorização de pequenos
produtores, produtores agroecológicos e orgânicos e cooperativas.
Em um processo onde há dinamismo econômico
local aliado a uma forma de produção sustentável, reduzindo ou eliminando por
completo os agroquímicos da cadeia de produção, pratica-se uma agricultura
menos intensiva, familiar e sustentável. A opção pelos circuitos curtos de
produção reduz a “pegada ecológica” não só no modo de produção, mas também na
cadeia de comercialização, diminuindo substancialmente a emissão de dióxido de
carbono na atmosfera e a dependência dos transportes que se utilizam de
combustíveis fósseis. A experiência dos circuitos alimentares de curta
distância possibilita conectar e aproximar os locais de produção,
armazenamento, distribuição e consumo de alimentos saudáveis e naturais. Em
diferentes cidades, moradores se organizam para fazer compras coletivas de
alimentos naturais e saudáveis diretamente de produtores agrícolas locais ou de
regiões próximas ao local de moradia.
Também testemunhamos o fortalecimento de organizações
e grupos informais que promovem a agricultura urbana, estruturando hortas
comunitárias em praças, parques, escolas e terrenos ociosos, criando
alternativas de geração de renda, promovendo a ressignificação e a ocupação
cidadã de espaços públicos, além do resultado direto de aumentar a
disponibilidade de alimentos. Em sintonia com a busca por maior segurança
alimentar e nutricional, o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo,
aprovado em 2014, redefiniu zonas rurais com o objetivo de ampliar a produção e
consumo local de alimentos naturais e saudáveis, especialmente nas áreas de
interesse ambiental e de proteção e recuperação de mananciais. A experiência
demonstra a importância da atuação do poder público na construção de políticas
de fomento à agricultura local, urbana profissional (comercialização) e de
vizinhança (complementação alimentar).
Quando a comida vira objeto de
especulação, fica difícil o seu acesso de maneira justa. Entre as recomendações
da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em
2015, em Brasília, está a instituição de uma política soberana de abastecimento
alimentar, cujos componentes essenciais são a reestruturação das centrais de
abastecimento e o fortalecimento da Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab). Não se pode minimizar os riscos de crise de abastecimento perante
situações de calamidade ou conflito que dificultem ou impeçam a circulação dos
meios de transporte utilizados para ultrapassar a distância entre a produção e
o consumo, nos modelos tradicionais. É necessário fortalecer uma política de
estocagem de alimentos, com o estabelecimento de plano de contingência que
permita garantir o abastecimento da população brasileira em períodos críticos,
com estabilidade de preços.
Alimentar milhões de brasileiros passa por
fortalecer a conexão entre a cidade e o campo. Pensar a segurança alimentar e
nutricional é pensar no acesso, distribuição, disponibilidade, consumo e,
portanto, formas de abastecimento. É estimular a diversificação de culturas. É
buscar a readequação da legislação sanitária de alimentos de origem animal e
bebidas à produção artesanal, tradicional e familiar. É fortalecer o Plano
Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. É garantir do acesso à terra e ao
território, requisito fundamental para a redução das desigualdades no campo
brasileiro e para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.
No sábado (27), no auge da crise de
abastecimento, fui ao Ceasa de Brasília temerosa do que (não) iria encontrar.
Meu circuito é Mercado Orgânico e Mercado da Agricultura Familiar ― dois locais
onde comprovo todas as semanas que, comprando do produtor, os preços de
alimentos saudáveis sem veneno são justos e acessíveis. Ao me deparar com bancas
repletas de alimentos e sem nenhum centavo de aumento no preço, perguntei a uma
das produtoras como estava lidando com a “crise”. Ela me respondeu: “Nossa
chácara é perto, tinha um pouco de gasolina na caminhonete, aí deu para vir com
tranquilidade”. Simples assim.
*
Elisabetta Recine é presidenta do Consea, professora da Universidade de
Brasília (UnB) e pesquisadora.
Fonte:
https://diplomatique.org.br
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