SEGURANÇA:
Violência, subjetividades e projetos de vida e cidadania no Brasil
por Bruno Paes Manso, Renato Sérgio de
Lima e Samira Bueno
Nas salas de aula do ensino médio da rede
pública, professores costumam reclamar dos desafios para prender a atenção dos
jovens. Numa mistura de ceticismo e fatalismo, muitos alunos preferem abandonar
a escola para ganhar dinheiro e se sustentar, como se soubessem dos obstáculos
que teriam para escapar do futuro insosso que os espera. É como se as escolas
não fossem capazes de despertar em muitos jovens a capacidade de sonhar; não
fossem capazes de interagir com múltiplas moralidades e estimular um novo
padrão ético pautado na cidadania e na vida como valor público supremo.
Escolas que poderiam servir como portas de
entrada da rede de acolhimento, atendimento social e cidadania isolam-se em
seus edifícios cada vez mais vilipendiados e ameaçados pelo crime, que parece
seduzir principalmente as subjetividades masculinas em formação, oferecendo a
possibilidade de uma vida de aventura, insubmissão, consumo, satisfações
desenfreada das pulsões e desejos, e luta contra um sistema que oprime e
humilha, mesmo que ao preço de morrer jovem ou de perder a liberdade numa
prisão lotada.
Como convencer os adolescentes a duvidar
das ilusões e promessas da vida no crime? Como despertar nesses jovens sonhos
de contribuir para o bem-estar coletivo do mundo em que vivem? Como gerar
empatia diante de tantas injustiças e desigualdades? Como fazer frente ao
imaginário social que divide a sociedade entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e
aceita que estes últimos sejam matáveis?
Em vez de despertarem sonhos e vocações,
as instituições passaram a agir como se estivessem em conflito aberto contra os
jovens pobres. Em 1990, o país tinha 90 mil presos, total que passou para 726
mil em 2016. Mesmo com a escalada vertiginosa de encarceramento, que dependeu
também de investimentos crescentes no policiamento ostensivo militarizado nos
bairros pobres, a situação degringolou.
A prisão passou a ser uma das poucas
políticas públicas universais para os jovens brasileiros pobres e negros,
independentemente de ela ser hoje o principal celeiro do crime e da violência
no país. Vivemos em um transe, em que se acredita que o veneno que nos sufoca
como nação democrática é o remédio para nossos males.
Em 2005, no primeiro levantamento feito
pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha registrado 40.975
homicídios. Em 2017, foram 63.880 casos. Isso para não falar dos mais de 60 mil
registros de estupros e das mais de 220 mil ocorrências de violência doméstica
contra mulheres. As prisões superlotadas, em vez de controlarem o crime, se
tornaram locais de articulação e formação de redes para as lideranças
criminais. O rápido fortalecimento e espraiamento das facções dentro e fora dos
presídios mudou a cena do crime no Brasil, ampliando o mercado de drogas e de
armas em escala inédita.
Mesmo diante das evidências dos limites
dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo
remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e
louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe
de acabar. Poucos olham para os custos econômicos e sociais dessas opções
político-ideológicas.
As incursões cotidianas das polícias
militares nos bairros pobres, prendendo muitas vezes usuários de droga ou
pequenos vendedores, geram violência desnecessária e excessiva. Um policial é
morto todos os dias no país. Em sentido inverso, as polícias brasileiras
mataram ao menos 14 pessoas por dia em 2017 e, mesmo que entre estas haja casos
legítimos, pouco se divulga acerca das investigações e das razões que motivaram
essas mortes. Em vez de controlar o crime e a violência, isso aumenta a
sensação de raiva e de impotência daqueles que passam a se enxergar como
inimigos.
Se a educação é a maior “arma” da
cidadania, a frustração ajuda a sabotar a tarefa dos educadores de abrir portas
para o futuro dos adolescentes. A segurança passa a ser vista como tema
exclusivo das polícias e vira presa fácil de discursos pautados no medo e na
exploração da desesperança e na falta de perspectivas. O mata-mata é estimulado
pela covardia política e pela valentia retórica de quem se arvora porta-voz da
virtude.
Nas prisões lotadas, as lideranças
criminais se aproveitam para engrossar suas fileiras, criando um discurso
sedutor. “O crime fortalece o crime” é um dos motes dos grupos criminosos. Como
o sistema os enxerga como inimigos, sujeitos a serem exterminados ou
trancafiados sem direitos, cabe se organizar para ganhar dinheiro no crime e
“bater de frente” com o sistema.
Uma política de segurança precisa
desmontar essa máquina de guerra e de encarceramento que ajudou a promover a
expansão do crime e fortaleceu as facções. Para isso, as polícias devem agir
com estratégia e foco, de forma inteligente, para fragilizar economicamente as
tiranias armadas financiadas pelo dinheiro ilegal, que gera violência no
tráfico de drogas, nas milícias e nos grupos de extermínio que matam e cobram
para oferecer proteção, entre outras atividades.
A vitalidade de democracias modernas
depende da capacidade do Estado de preservar o monopólio do uso legítimo da
força. A engrenagem de guerra, além de produzir revolta nos jovens perseguidos,
vem criando grupos paramilitares que, ao terem carta branca para matar, acabam
se voltando contra o Estado em defesa de seus interesses financeiros e
corporativos.
Mais do que o esforço brutal de prender em
flagrante nos bairros pobres, os alicerces estratégicos e financeiros dessa
atividade devem ser fragilizados. Isso depende do compartilhamento de
informações entre as instituições policiais e de justiça desde Polícia Militar
e Civil, passando pelo Ministério Público, secretarias de administração
penitenciária, instituições de investigação econômica e penal, em âmbito
estadual e federal.
Quem são os chefes e grandes
financiadores, onde o dinheiro é depositado e lavado, de onde vêm as
mercadorias ilegais, quais são as conexões com autoridades, onde compram armas.
A capacidade de sedução das facções e quadrilhas vai diminuir com a queda do
lucro gerado nessas atividades. Para tanto, a batalha urgente a ser travada é
aquela para emperrar a engrenagem financeira do crime. Não precisamos de mais
guerras para alimentar os senhores da morte, encarcerar e/ou exterminar jovens
pobres e negros.
Mais importante, contudo, é a disputa das
subjetividades masculinas na transição da adolescência para a vida adulta. O
desafio é liderar e apontar caminhos para esses corações e essas mentes. Para
construir sonhos e seduzir, as instituições do Estado devem abrir portas,
estimular a vontade de compartilhar uma vida comum e solidária. Isso é feito
com escola, arte, cultura, esporte, lazer, saúde de qualidade, debates,
conversas, incluindo aqueles que um dia se iludiram com as promessas do crime
até perceber que estavam sendo enganados. Enganam-se aqueles que acreditam que
a autoridade e o poder são exercidos com o uso desmedido da violência.
Conseguem liderar e fortalecer numa democracia aqueles que percebem que, na
verdade, estão construindo sonhos e disputando o futuro.
*Bruno Paes Manso é doutor em Ciência
Política pela USP, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência
(NEV-USP); Renato Sérgio de Lima é doutor em Sociologia pela USP, professor da
FGV-Eaesp e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Samira
Bueno é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-Eaesp e diretora
executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: diplomatique
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