Redemocratização do Brasil: você conhece a história política do nosso
país?
Escrito por Renan Lima /Portal
Politize!
Nos
últimos anos, muito foi falado sobre uma possível intervenção militar no
Brasil. Quando assuntos deste tipo começam a florescer é importante refletirmos
sobre a história da democracia no nosso país. Então, você já parou para pensar
em como ocorreu a redemocratização no Brasil e quais são seus impactos na
atualidade?
Neste
post, iremos discutir sobre isso. Para fazer esse caminho, é interessante
começarmos pelo cenário no qual o golpe de 1964 ocorreu e ver, brevemente, a
dinâmica política desse período.
Golpe
militar de 1964
Após a
Segunda Guerra Mundial, um confronto político-ideológico entre os Estados
Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS) teve início, a Guerra Fria. Esse
período foi marcado por grandes tensões, as quais se caracterizaram por embates
ideológicos por parte de ambos os países: Estados Unidos (capitalismo) x União
Soviética (socialismo). Assim, devido a essa tensão, muitos governos e forças
políticas, apoiadores dos EUA, incitaram o medo na população de que havia uma
ameaça comunista, representada por seguidores da URSS, assolando o país. Esse
contexto se estendeu até 1991, ano que marca o fim da URSS.
Em meio a
essa tensão internacional, o Brasil, em 1961, passava pelo governo de João
Goulart, popularmente conhecido como Jango. Seu governo teve como pauta questões
que atendiam demandas populares, como a realização da reforma agrária e o
reajuste salarial. Por conta disso, seu governo não agradou a elite e a direita
brasileira, a qual era representada pelo partido UDN e que vinha perdendo as
eleições presidenciais desde 1945.
Assim,
devido ao contexto político internacional da época, militares e políticos
provocaram o medo na população brasileira de que Jango estaria tentando
implantar um governo comunista no Brasil. A partir desse contexto, os militares
justificaram o golpe como uma forma de impedir que o comunismo fosse instaurado
no país e de restaurar a ordem que, supostamente, teria sido perdida.
Com isso,
diversas forças sociais apoiaram o golpe militar de 1964: militares, grupos
políticos de direita e civis. Os protagonistas do golpe não se juntaram por uma
afinidade ideológica, mas sim como uma maneira de tirar a esquerda do poder.
Além disso, por conta do medo instaurado na sociedade civil, muitos apoiaram o
golpe por uma descrença em uma vertente política, o socialismo e a esquerda
como um todo. Por esse motivo, a ditadura militar brasileira foi marcada por
uma não uniformidade, a qual se observa nas diferentes visões que os grupos que
fizeram parte do golpe tinham no momento que assumiram o poder.
Exemplo
dessa situação é a ideia da duração do regime. Grupos políticos de direita,
como o partido UDN, acreditavam que a presença dos militares no poder seria
passageira até que a ordem no país estivesse reestabelecida. Mesmo uma ala dos
militares, chamada moderada, também pensava que esse era o caminho. No entanto,
durante os primeiros anos do regime, a chamada linha dura dos militares se
fortaleceu e assumiu o poder em 1968. Essa ala visava eliminar a oposição e
limitar a vida pública, além de acreditarem que não era o momento de devolver o
poder para os civis. Com isso, ocorreu o endurecimento do regime.
A redemocratização do Brasil
No
contexto de disputas internas que perdurou toda a ditadura, a transição para o
regime democrático começou a dar sinais no governo de Ernesto Geisel –
penúltimo presidente militar e representante da ala moderada.
Essa
situação aconteceu por iniciativa do próprio governo que viu nas eleições
legislativas de 1974 a perda da legitimidade do regime. Isso porque o resultado
das eleições foi favorável ao MDB – único partido da oposição permitido pelo
regime militar.
Além
disso, na mesma época, ocorreu a rearticulação dos movimentos sociais. Dessa
maneira, o governo queria ter, e teve, o controle sobre a transição, pois
encontrou nela uma forma de negociar algumas questões com a oposição em troca
da abertura do regime. Um exemplo disso foi a decisão de não julgar os crimes
contra os Direitos Humanos, especialmente os de tortura, cometidos durante a
ditadura. Além disso, ao controlar a transição, o governo conseguiu se inserir
no novo regime e, portanto, se manteve no poder.
Assim,
ocorreu no Brasil a chamada transição negociada, a qual é marcada pelo controle
do processo feito pelo governo militar através de constantes mudanças nas
regras políticas. Vale lembrar que uma transição negociada significa que a
redemocratização brasileira aconteceu por meio de um acordo feito entre os
moderados da oposição e do regime: a abertura política ocorre e em troca os
interesses militares não são feridos.
Lei da Anistia
Um
exemplo claro da transição negociada é a Lei da Anistia, promulgada em agosto
de 1979 pelo presidente João Batista Figueiredo. De acordo com o primeiro
artigo desta lei, é concedida a anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram
crimes políticos ou conexo com estes A lei considera crimes conexos aqueles que
se relacionam com crimes políticos ou que são cometidos por uma motivação
política. Contudo, a lei exclui do benefício aqueles que cometeram crimes de
terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Desse
modo, a lei perdoou os crimes cometidos pelos militares durante o regime
militar, não promovendo, portanto, um julgamento e nem uma eventual condenação
desses crimes.
No
entanto, ao mesmo tempo, a lei trouxe benefícios para a sociedade civil. Já que
concede anistia àqueles que tiveram seus direitos políticos restringidos por
conta dos Atos Institucionais e Complementares. Além disso, ela prevê o retorno
à vida político-partidária dos anistiados, desde que seja em partidos
legalmente constituídos.
Assim,
percebemos que a Lei da Anistia trouxe contribuições para a sociedade civil,
mas, ao mesmo tempo, promoveu o perdão para os crimes cometidos pelos
militares, além de permitir que estes voltassem para a vida política.
Vemos,
então, que não foi feito um debate político sobre o regime entre a oposição e o
governo, ou seja, não foram discutidas as políticas adotadas pelos militares –
desde questões econômicas e sociais até os crimes de tortura. A falta dessa
discussão gerou impactos na nossa política e sociedade que se estendem até
hoje.
Redemocratização negociada: impactos na sociedade brasileira hoje?
Para
podermos observar as consequências dessa forma de redemocratização nos
discursos políticos atuais, foi feito um recorte de tempo entre o afastamento
da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016 até as eleições presidenciais de 2018.
Na época
do impeachment de Dilma, diversas manifestações ocorreram – tanto favoráveis
quanto contrárias – em relação ao seu afastamento. O ponto é que algumas das
manifestações favoráveis tinham como bandeira a volta da ditadura militar, ou
seja, pediam a intervenção militar – uma dessas manifestações, por exemplo,
ocorreu na Avenida Paulista (SP), organizada pelo Movimento Vem Pra Rua, em
julho de 2016.
O
discurso adotado por essas pessoas era de que os militares restabeleceriam a
ordem no país – retomando o crescimento econômico e diminuindo a taxa de
desemprego – e expulsariam todos os corruptos, algo parecido com o que foi
veiculado no contexto do golpe de 64.
Esse
discurso – observado nos cartazes dos manifestantes – parte da ideia de que,
apesar da falta de liberdades civis, as “coisas funcionavam” durante a
ditadura. Há uma idealização do regime no sentido de que muitos acreditam que
nessa época não existia corrupção no país! No entanto, o que sabemos é que
muitas obras grandiosas foram realizadas sem ter um objetivo prático. Exemplo
disso é a Transamazônica que nunca terminou de ser construída, além de ter tido
como consequência as disputas agrárias na região, e a expulsão e morte de
milhares de indígenas.
Além do
fato de não terem um objetivo prático, parte do dinheiro para construir essas
obras veio de empréstimos concedidos principalmente pelos EUA. Fato que gerou
uma grande dívida externa ao Brasil, a qual se acentuou com o aumento de juros
durante o governo de João Figueiredo.
É preciso
reconhecer que essas obras contribuíram para a aceleração da industrialização e
do crescimento do PIB do Brasil, principalmente durante o governo de Emílio
Médici – no chamado milagre econômico. Por outro lado, esse crescimento foi
baseado em um alto endividamento externo e interno. Assim, é apenas uma
estabilidade aparente, pois resultou em um aprofundamento das desigualdades –
visto que não houve uma redistribuição de renda – e uma herança de juros da
dívida que durou por muitos anos já na redemocratização.
Outro
momento de grande reflexão sobre os impactos do nosso processo de
redemocratização ocorreu recentemente nos dois episódios de exaltação de um
torturador: em 2016, durante a votação pelo impeachment de Dilma Rousseff, na
Câmara dos Deputados e, em 2018, nas eleições presidenciais. Em 2016, o então
deputado Jair Bolsonaro exaltou em seu discurso o torturador Coronel Alberto
Brilhante Ustra. E, em 2018, apoiadores de sua candidatura iam para as ruas com
cartazes e camisetas com os dizeres “Ustra vive!”.
Vale
lembrar: Ustra foi o chefe do DOI-CODI entre 1969 e 1974. DOI-CODI foi como
ficaram conhecidos o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e o
Destacamento de Operações de Informações (DOI). Esses órgãos estatais foram
criados por diretrizes do Exército e tinham como objetivo centralizar e
organizar as ações repressivas aos contrários ao regime. Ustra foi acusado pela
morte e pelo desaparecimento de, pelo menos, 60 pessoas. Além disso, ao menos
500 casos de tortura foram cometidos enquanto chefiou o DOI-CODI.
Portanto,
a aberta exaltação de um torturador pode ser entendida como um reflexo do
processo de redemocratização brasileira, que nunca puniu os crimes da Ditadura
Militar.
Comissão Nacional da Verdade
A
Comissão Nacional da Verdade (CNV) é um órgão temporário criado por países com
o intuito de investigar violações aos Direitos Humanos que ocorreram no país.
Dessa forma, geralmente é estabelecido em Estados que passaram por períodos
autoritários e, assim, contribui para o fortalecimento da memória da ditadura
militar.
Vários
países latino-americanos realizaram a CNV após o fim de seus respectivos
regimes ditatoriais, como o Chile, a Argentina e o Brasil. No Chile, a Comissão
da Verdade foi instituída logo depois de seu processo de redemocratização e
tinha como objetivo investigar os crimes cometidos durante o governo de
Pinochet (1973-1990). Assim como no Chile, na Argentina, a CNV foi instaurada
logo após o fim da ditadura com o intuito de investigar o desaparecimento de
pessoas. Já no Brasil, as coisas ocorreram de forma um pouco diferentes.
A CNV
brasileira foi criada pela Lei 12528/2011, sendo oficialmente instituída em
maio de 2012. Desse modo, somente depois de quase 30 anos que a ditadura
militar havia acabado, o Estado brasileiro criou o órgão. Isso favoreceu também
o enfraquecimento da memória das pessoas sobre esse período, afinal muito tempo
se passou até que uma investigação sobre o período fosse conduzida.
Além
disso, diferentemente da Argentina, a CNV brasileira não possui força judicial
por conta da Lei de Anistia, ou seja, ela não possui o poder de punir ou
condenar qualquer pessoa que tenha violado os Direitos Humanos no regime
ditatorial. Nesse sentido, a investigação teve como propósito o conforto às
famílias, prestar esclarecimentos à população e elaborar documentos para
estudos.
A
Comissão Nacional da Verdade brasileira durou até 2014 e foi um importante
instrumento de esclarecimento sobre questões relacionadas a este período:
muitos crimes e casos de tortura vieram à tona graças à Comissão Nacional da
Verdade.
Seu
relatório final foi entregue em dezembro e contou com informações sobre os
métodos de tortura, execuções e desaparecimento de cadáveres, além das
informações sobre detenções ilegais e os desaparecimentos forçados. Além disso,
no relatório ainda consta: depoimentos de mulheres violentadas; de mães que
perderam os filhos; de militantes políticos que perderam seus companheiros; de
advogados que andavam de lá para cá o dia todo com uma máquina de escrever em
um carro para defender os detidos; de assassinos que descrevem como matavam
impiedosamente. Descrevem-se ainda os lugares de tortura, as celas, as empresas
envolvidas e as ramificações internacionais da repressão brasileira (…)
Por conta
da sistematicidade e da escala que esses crimes contra a humanidade foram
cometidos, o relatório final entende que não são passíveis de anistia e pede
punição aos 377 agentes do Estado – pela primeira vez nomeados – que foram
acusados de cometer esses crimes. Contudo, o pedido não foi levado adiante.
Assim, a
Comissão Nacional da Verdade contribuiu para que a memória da ditadura militar
brasileira fosse fortalecida e fez isso tanto pela divulgação dos crimes
cometidos, ainda que tenha havido punição, quanto pelo material que forneceu
para estudos sobre o período.
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