Gripe espanhola: a grande pandemia do século XX
Escrito por Lígia Janasi/Portal Politize!
É comum
que, em meio à ameaça de uma nova pandemia viral, se crie um clima de pânico
geral, e são muitas as dúvidas e os temores que nos assolam. Talvez você não
saiba, mas por trás deste clima de medo, ronda o fantasma da gripe espanhola –
uma gripe que, entre meados de 1918 e meados de 1919, se alastrou pelo mundo
todo, deixando milhões de mortos e ganhando, com isso, a fama de a grande “mãe
das pandemias” dos tempos modernos.
Mas você
sabe o que foi a gripe espanhola? Por que, a cada novo surto, alguém volta a
falar dela? O que foi feito à época para contê-la? Que lições podemos tirar de
sua história?
A seguir,
trazemos um breve panorama histórico da maior pandemia do século XX, quais os mistérios
que ainda a cercam, e aproveitamos para pensar como a sociedade atual poderia
lidar na possibilidade de uma nova gripe espanhola no século XXI.
As origens da Gripe Espanhola
Apesar do
nome, a gripe espanhola não surgiu na Espanha. Na verdade, até hoje não se sabe
ao certo qual o local de sua origem, mas diversos pesquisadores trabalham com a
hipótese de que ela tenha se originado nos campos de treinamento militar dos
Estados Unidos, em março de 1918.
Mas, então, por que chamá-la de gripe espanhola?
À época,
muitas das grandes potências mundiais estavam envolvidas na Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) e, portanto, suas imprensas censuravam as notícias sobre a
gripe: não podiam deixar que o restante do mundo soubesse que seus exércitos
haviam sido afetados. Essa situação foi diferente com a Espanha. Como ela se
manteve neutra durante toda a guerra, não precisou fazer segredo sobre a nova
doença. Por isso, assim que ela chegava a um novo país, era logo chamada de “a
espanhola”.
No
Brasil, pouco se falou sobre a gripe até setembro de 1918, quando surgiram
rumores de que os tripulantes de dois navios brasileiros, auxiliares dos
aliados na Primeira Guerra Mundial, haviam sido infectados na Europa e na
África.
Não se
sabe com precisão quais foram os primeiros infectados em terras brasileiras,
mas associa-se a disseminação da doença ao navio inglês Demerara que, com
doentes a bordo, aportara em algumas cidades do Nordeste naquele mês de
setembro. A partir daí, a gripe se espalhou rapidamente, vitimando milhares de
brasileiros no intervalo de poucos meses.
As três ondas da gripe espanhola
Entre
março de 1918 e maio de 1919, costuma-se dizer que a gripe espanhola percorreu
três ondas.
A
primeira (de março a agosto de 1918), embora extremamente contagiosa, foi considerada
benigna, por ter provocado relativamente poucas mortes. Até então, haviam casos
confirmados somente nos EUA e na Europa.
Foi com a
segunda onda (de agosto de 1918 a fevereiro de 1919) que esse cenário se
agravou definitivamente. Durante o período, a doença se alastrou pela Índia,
Sudeste Asiático, Japão, China, África, América Central e do Sul. Em todos os
países, provocou um elevadíssimo número de mortos.
A
terceira onda (de fevereiro a maio de 1919), embora mais letal que a primeira,
teve um número de mortos relativamente mais baixo que a segunda.
Ao todo,
estipula-se que a Gripe Espanhola vitimou de 20 a 40 milhões de pessoas ao
redor do mundo, número muito superior às 8 milhões de vítimas decorrentes da
Primeira Guerra Mundial. Estimativas menos conservadoras calculam que até 5% da
população mundial tenha morrido em decorrência da gripe, e que 500 milhões de
pessoas tenham sido infectadas. Vale lembrar que, à época, ainda não somávamos
nem 2 bilhões de pessoas por todo o globo.
No
Brasil, foram cerca de 35 mil mortes, dentre as quais ⅓ se registraram somente
no estado do Rio de Janeiro. Dentre as vítimas brasileiras, consta inclusive o
presidente eleito Rodrigues Alves (1848-1919), que faleceu em janeiro de 1919,
não chegando sequer a tomar posse, em novembro do ano anterior.
Combate à gripe espanhola no Brasil
Diz-se
que a gripe espanhola escancarou a precária situação da saúde no Brasil e a
total falta de capacidade do governo de lidar com a nova doença. Em outubro, o
então diretor da Saúde Pública, Carlos Seidl (1867-1929) admitiu a
impossibilidade de controlar a gripe. Foi demitido no mesmo mês e substituído
por Theóphilo Almeida Torres (1863-1928), que nomeou o médico Carlos Chagas
(1879-1934) para encabeçar a árdua tarefa de combater a influenza.
Certo que
não era culpa tão-somente da administração brasileira: embora já se partilhasse
a ideia de que a gripe era causada por um microrganismo específico, a
comunidade científica não conseguia identificá-lo e, portanto, não se pôde
fabricar nenhuma vacina à tempo.
De fato,
o vírus responsável pela gripe espanhola só foi conhecido na década de 1930, e
mesmo então a tarefa de produzir medicamentos exitosos contra este vírus
permaneceu difícil, dada sua alta capacidade de mutação. A primeira vacina contra
a gripe espanhola foi fabricada somente em 1944.
À época,
Chagas fez o que pôde: estabeleceu regimes de quarentena e isolamento para os
navios que aportavam no país, dotou a cidade de maior número de leitos,
estabeleceu a notificação compulsória de casos da doença. Ainda em outubro, O
Estado de S. Paulo publicou o seguinte comunicado do Serviço Sanitário, sob o
título de “Conselhos ao Povo”:
Evitar
aglomerações, principalmente à noite.
Não fazer
visitas.
Tomar
cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina mentolada,
gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e
infusões contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras.
Tomar,
como preventivo, internamente, qualquer sal de quinino nas doses de 25 a 50 centigramas
por dia, e de preferência no momento das refeições.
Evitar
toda a fadiga ou excesso físico.
O doente,
aos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e
afasta as complicações e contágio. Não deve receber, absolutamente, nenhuma
visita.
Evitar as
causas de resfriamento, é de necessidade tanto para os sãos, como para os
doentes e os convalescentes.
Às pessoa
idosas devem aplicar-se com mais rigor ainda todos esses cuidados.
(O Estado
de S. Paulo, 21/10/1918, p. 3)
Diante da
ausência de medidas mais concretas de combate e tratamento à gripe e da
explosão de casos fatais, o pânico era enorme. No Brasil, ainda não existiam
hospitais públicos – foi por causa deste surto que o governo começou a montar
uma rede de saúde pública – e, no desespero, muitos doentes recorriam às
delegacias de polícia para pedir ajuda. A proliferação de remédios caseiros e
de médicos se autopromovendo com promessas milagrosas foi intensa. Há,
inclusive, relatos de uma mistura de limão com mel que, dizia-se, era bom
remédio contra a gripe espanhola: trata-se da provável origem da nossa
caipirinha.
Uma “nova espanhola” no séc. XXI?
Mesmo com
os avanços da medicina, especialistas dizem que ainda estamos pouco preparados
para enfrentar uma “nova espanhola”. Primeiro, porque o nível de globalização a
que chegamos facilitaria a propagação do vírus de forma rápida e desenfreada
por todo o globo. Segundo, porque a alta capacidade de mutação do tipo de vírus
em questão dificulta muito o trabalho dos cientistas, uma vez que é impossível
prever suas mutações e, portanto, saber de antemão qual vírus será o próximo a
infectar humanos e potencialmente causar uma epidemia.
Desse
modo, no que diz respeito às políticas de prevenção e contenção da doença, pouco
mudou de 100 anos para cá. Como temos visto com o caso do novo coronavírus,
fala-se principalmente em campanhas de cuidados com a higiene, em isolamento e
em quarentena – políticas que, como já vimos, não trazem novidade alguma
àquelas adotadas em 1918. O que muda, sim, é a melhora da capacidade da
medicina de cuidado e controle dos sintomas virais – o que, de todo modo, não é
pouca coisa.
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