Especialista
aponta recorte racial como prioridade de vacinação
Negros
são os que mais morrem na pandemia, afirma epidemiologista
Publicado em
29/03/2021 - 16:47 Por Camila Boehm - Repórter da Agência Brasil - Brasília
Estudo
mostrou que as desigualdades raciais e sociais foram intensificadas pela
pandemia de covid-19, levando a um número maior de mortes entre a população
negra do Brasil no ano passado. Mortes por doenças - incluindo doenças
respiratórias como a covid-19 - aumentaram 18% entre os brasileiros brancos no
último ano, enquanto entre pessoas negras o crescimento chegou a 28%. De acordo
com especialista, políticas públicas devem considerar a desigualdade racial
para o combate à pandemia.
Realizado
pela Vital Strategies e pelo núcleo de pesquisa Afro-Cebrap - do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento -, o estudo utilizou o excesso de
mortalidade como indicador. O método é usado por epidemiologistas e
especialistas em saúde pública para calcular a diferença entre o número de
mortes esperadas e o número de mortes observadas em um determinado período e
local.
Na análise,
foi comparada a quantidade de óbitos por causas naturais esperada em 2020 e a
quantidade de óbitos observada para o mesmo ano, revelando que cerca de 270 mil
brasileiros morreram acima do esperado no ano passado em comparação com os anos
anteriores. Dessas 270 mil, 153 mil ocorreram entre negros e 117 entre brancos,
ou seja, foram 30% mais negros dentre as mortes em excesso.
“Se pensar
em termos de exposição, você imagina que a população está exposta igualmente.
Quando você olha por raça/cor, você vê que não é verdade, que negros - pretos e
pardos - estão muito mais expostos aos perigos da pandemia e estão muito mais
desassistidos em relação a seus próprios problemas de saúde”, disse Fatima
Marinho, epidemiologista que conduziu o estudo e consultora sênior da Vital
Strategies.
O estudo foi
feito a partir de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do
Ministério da Saúde (SIM) e do sistema de informação da Associação Nacional dos
Registradores de Pessoas Naturais, além de dados populacionais do IBGE.
Os dados
utilizados refletem não apenas os impactos diretos da covid-19 – aumento de
mortes pela doença –, mas os indiretos, devido a restrições de movimentação,
superlotação de hospitais e unidades de saúde, redução da busca por atendimento
médico por parte de doentes graves por medo de se infectar, além do
cancelamento ou adiamento de procedimentos médico-hospitalar para doentes
graves, devido ao risco de infecção pelo novo coronavírus.
A
pesquisadora destaca que desde o nascimento as condições impostas à população
negra no país são piores do que à população branca, o que contribui para
consequências como maior mortalidade em situações como a pandemia atual. O
próprio racismo, segundo a epidemiologista, é um fator estressante que pode
desencadear adoecimento. “As pessoas [negras] ficam mais estressadas, elas
vivem em áreas violentas, elas sofrem muito mais violência policial se for
homem e, se for mulher, sofre abuso mesmo, então vai desenvolvendo nessa
população um estresse que vai impactando também na saúde.”
Quando
analisados por gênero, os dados mostram que morreram 23,9% mulheres negras a
mais do que o esperado, enquanto esse excesso de mortalidade foi de 15,3% entre
mulheres brancas. Considerando os homens, o excesso de mortes ficou em 31% para
negros e 20% para brancos. Em relação a faixa etária, os dados mostram que
pessoas negras até 29 anos morreram 32,9% a mais que o esperado, enquanto
brancos na mesma faixa etária morreram 22,6% a mais que o esperado.
“Chamamos
isso de uma sindemia, nesse sentido: já está dado para ele [pessoas negras]
péssimas condições desde o nascer, na vida e até a morte, por isso ele vai
viver menos. E, por isso, agora veio a covid-19 radicalizar realmente essa
desigualdade racial no Brasil”, avalia Fatima. Para combater de forma eficaz a
pandemia, ela acredita que o poder público deve levar em consideração não
apenas o recorte etário, mas o de raça/cor.
Políticas
de proteção
A
epidemiologista avalia que, mesmo quando se iniciou a política de proteção
contra a covid-19, que abrange a vacinação e o isolamento social, as populações
negra e pobre ficaram majoritariamente excluídas. “Se você fala que vai fazer
um lockdown, quem é que vai pra rua trabalhar? Quem é que tem que pegar trem
lotado todos os dias? São os negros principalmente. E aí eu dou mais exposição
[à doença] a eles e não tem nem a solução da vacina pra eles porque eles são
mais jovens.”, avaliou.
A
expectativa de vida é menor entre a população negra, o que faz com que eles
acabem excluídos dos grupos prioritários atuais de vacinação, que são os
idosos. “Negros são 56% da população brasileira e brancos são 43%. Se você
olhar para a faixa etária de 60 anos e mais, inverte: 50% são brancos, 49% são
negros. Se chegar na faixa etária de 80 e mais, 75% são brancos, só temos 25%
de negros sobrevivendo até os 80 anos”, ressaltou.
Para Fatima,
como a expectativa de vida de negros é menor que a de brancos, esse fator
deveria ser considerado na implementação de políticas públicas, o que
contribuiria para uma redução dessa desigualdade. “Todos os que tem 90 [anos]
primeiro, quase não tem negro aí. Os que tem 80 primeiro, também quase não tem
negro aí. Então eu [enquanto gestor público] não protejo esse grupo e essa
desigualdade se reflete em um impacto muito maior de adoecimento e morte na
população negra e eu não tenho nenhuma política para reduzir esse dano.”
Ela afirma
que a decisão de vacinar por idade não é baseada na epidemiologia da doença e
que é simplesmente uma decisão burocrática. “Se você basear na epidemiologia, você
vai vacinar quem tem mais risco”, destaca. Isso significa que não é só a idade
aumenta o risco de ter um caso grave ou morte por covid-19, mas também os
determinantes sociais. Há também o elemento das regiões mais precarizadas, que
estão mais expostas aos riscos e mortes pela doença.
“Enxergando
isso, eu consigo controlar melhor a disseminação do vírus. Está errada a forma
como está se fazendo, porque eu tenho que exatamente olhar para onde tem maior
circulação viral. O que eu quero controlar com a vacina? A circulação viral.
Quanto menos gente estiver transmitindo, eu consigo reduzir a circulação do
vírus e então vou reduzir o impacto desse vírus na população em geral”,
concluiu a epidemiologista. Ela acrescenta que a vacina não é um instrumento de
proteção individual, mas sim instrumento de proteção coletiva.
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