Dez anos após morte de Kadafi, Líbia é criticada por crise
humanitária
Escalada de violência mantém refugiados sob atmosfera do
medo
Publicado em 20/10/2021 - 07:30 Por Léo Rodrigues -
Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro
Há exatos dez anos, a morte de Muammar Kadafi foi
classificada pelo então secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan), Anders Fogh Rasmussen, como o fim do "regime do medo".
Ele governava a Líbia há cerca de quatro décadas. Justamente no mês em que se
completa a primeira década sem sua liderança, o país está sendo alvo de uma
série de denúncias de organizações internacionais dedicadas a causas
humanitárias. Trata-se de uma reação à escalada de detenções e violência que
mantém migrantes e refugiados sob a atmosfera do medo.
Situada no norte africano e separada da Itália pelo Mar
Mediterrâneo, a Líbia é uma rota escolhida para muitos indivíduos que sonham em
chegar à Europa. Vulneráveis, eles podem se tornar vítimas das máfias de
tráfico de pessoas, que vendem uma perigosa travessia em embarcações
inapropriadas e superlotadas.
Entre as organizações preocupadas com a situação estão os
Médicos Sem Fronteiras (MSF), que atuam em diversos lugares do mundo combinando
socorro médico e ações em favor das populações em risco. Há duas semanas, eles
divulgaram nota onde afirmam que pelo menos 5 mil pessoas foram presas
arbitrariamente na capital Trípoli desde o início de outubro. Dessa forma, o
número de migrantes e refugiados mantidos em centros de detenção pelas forças
de segurança do governo teria triplicado em apenas cinco dias. Muitas delas
estariam necessitando urgentemente de cuidados médicos.
Denúncias feitas pela coordenadora operacional de MSF para
a Líbia, Ellen van der Velden, são citadas na nota. “Estamos vendo as forças de
segurança tomarem medidas extremas para deter arbitrariamente pessoas mais
vulneráveis, que estão em condições desumanas em instalações superlotadas.
Famílias inteiras de migrantes e refugiados que vivem em Trípoli foram
capturadas, algemadas e transportadas para vários centros de detenção. No
processo, elas foram feridas e até mortas, famílias foram divididas e suas
casas foram reduzidas a pilhas de escombros”, diz Ellen.
Diante da insegurança, as equipes de MSF não estão
conseguindo oferecer serviços de saúde por meio de clínicas móveis para
migrantes vulneráveis e refugiados que necessitam de cuidados. As incursões
também teriam afetado a capacidade das pessoas de se locomoverem livremente pela
cidade e buscarem atendimento nas unidades de saúde, já que aqueles que não
foram presos estariam com medo de sair de casa.
Os MSF informaram ainda ter conseguido visitar dois centros
de detenção: Al-Mabani e Shara Zawiya. Em ambos, os registros são de celas
insalubres e superlotadas. Apesar do tempo de visitação limitado, as equipes
anunciaram que conseguiram atender 161 pacientes e viabilizaram a transferência
de 21 pessoas para unidades de saúde especializadas. Em Al-Mabani, foram
colhidos relatos de presos que contavam apenas com um pedaço e pão e uma fatia
de queijo por dia. A organização presenciou casos de homens inconscientes e de
vítimas de violência.
"No centro de detenção Shara Zawiya, que normalmente
acomoda entre 200 e 250 pessoas, uma equipe de MSF testemunhou mais de 550
mulheres e crianças amontoadas nas celas, incluindo mulheres grávidas e
recém-nascidos. Cerca de 120 pessoas compartilhavam apenas um banheiro,
enquanto baldes cheios de urina eram alinhados perto das portas das celas. Quando
a comida foi distribuída, um tumulto eclodiu enquanto as mulheres protestavam
contra as condições em que estavam detidas", diz a nota da organização,
finalizada com um pedido de interrupção das prisões em massa e a libertação de
pessoas detidas ilegalmente.
A situação é acompanhada de perto pela Organização das
Nações Unidas (ONU), por meio do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (Acnur). No dia 8 de outubro, uma declaração foi divulgada por Ayman
Gharaibeh, diretor do escritório regional do Acnur para o Oriente Médio e Norte
da África.
"Estamos cada vez mais alarmados com a situação
humanitária dos requerentes de asilo e refugiados na Líbia. Após uma operação
de segurança em grande escala pelas autoridades líbias na semana passada,
prisões têm ocorrido em muitas partes de Trípoli, visando áreas onde os
requerentes de asilo e migrantes estão vivendo. Pelo menos uma pessoa foi morta
e 15 ficaram feridas", diz o texto.
Segundo o Acnur, mais de 5 mil refugiados já foram levados
para centros de detenção em condições de superlotação e insalubridade. As
denúncias também dão conta de que casas demolidas abrigavam famílias com
crianças. A entidade informa ainda que tem ocorrido aumento no número de
requerentes de asilo, apelando para a evacuação do país.
"A suspensão dos voos humanitários levou vários países
a informarem ao Acnur que não podem mais receber pedidos de reassentamento
adicionais da Líbia para 2021. No total, espera-se que quase mil vagas de
reassentamento não sejam preenchidas pela Líbia ou por meio dos Mecanismos de
Trânsito de Emergência (ETM) em Ruanda e Níger. O ETM permite que o Acnur
retire as pessoas da Líbia e, em seguida, processe suas reivindicações por
soluções de longo prazo", acrescenta a declaração de Gharaibeh.
Pós-Kadafi
Kadafi governava o país desde 1969, tendo ocupado também
funções importantes no cenário internacional como a presidência da União
Africana de 2009 a 2010. Embora crítico da política dos Estados Unidos, à qual
acusava de imperialismo, tinha uma relação econômica geralmente amistosa com
países europeus, tendo em vista que a Líbia é importante fornecedor de petróleo
para o continente. Mas após quatro décadas de sua liderança, havia forte
polarização na população. Em 2011, protestos de grandes proporções começaram a
eclodir em cidades importantes. Organizações internacionais alertaram para o
risco de um massacre diante do iminente confronto entre tropas oficiais
apoiadas por partidários do governo e opositores que acusavam Kadafi de
autoritarismo, corrupção e violação de direitos humanos.
O conflito que ganhava contornos violentos era um
desdobramento das manifestações populares que ocorriam na Líbia, em sintonia
com o que se passava também em outros países, o que ficou conhecido
mundialmente como a Primavera Árabe. Com autorização da ONU, as forças militares
da Otan, sob a liderança dos Estados Unidos e com participação de ingleses e
franceses, decidiram intervir militarmente em favor do Conselho Nacional de
Transição (NTC), grupo de oposição que assumiu o governo e foi responsável pela
captura e morte de Kadafi em 20 de outubro de 2011.
"Nos seus anos finais, Kadafi tinha feito uma série de
acordos econômicos e políticos com a Europa - primeiro abrindo a Líbia para
investimentos dos europeus e depois fazendo um acordo com a União Europeia para
o controle das migrações. Mas havia uma dificuldade com governos europeus,
principalmente pelos longos anos em que ele apoiou grupos terroristas ou
armados que tentavam derrubar governos africanos. Então, quando alguns países
ocidentais viram a oportunidade de intervir na Líbia, eles aproveitaram de
maneira muito intensa", afirmou o cientista político Mauricio Santoro,
professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj).
Estima-se que em confrontos ocorridos entre os meses de
fevereiro e agosto de 2011, pelo menos 50 mil pessoas morreram. Mas a
estabilidade não veio, nem mesmo com as eleições realizadas em 2012. Uma guerra
civil mobilizou diversas milícias em uma violenta disputa pelo poder, entre
eles o Estado Islâmico. Responsável por autorizar a intervenção militar em
2011, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, chegou a reconhecer
em 2016 que seu pior erro como governante foi não ter acompanhado de maneira
efetiva o conflito após a queda de Kadafi.
"Entre 2014 e 2020, a Líbia viveu uma longa guerra
civil. Foram anos de instabilidade, com muitos grupos armados tentando
controlar partes do país. A derrubada do Kadafi não significou a democratização
da Líbia e sim um cenário de radicalização ideológica, com consequências
negativas para a população local. Só agora, no início deste ano, tivemos a
posse de um governo de união nacional que está preparando o terreno para
eleições nacionais, que devem ocorrer em dezembro. Mas sou cético quanto à
possibilidade de uma pacificação em longo prazo, porque os problemas econômicos
do país são muito graves. E o cenário global é de instabilidade", disse
Santoro.
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