Talvez
pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um
caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se
seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguíam-no de
avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma
virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o
défict.
Como
era muito seco de maneiras, tinha inimigos que chegavam a acusá-lo de bárbaro.
O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos
ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só
mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado
em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse
gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original
de um homem o que é puro efeito de relações sociais.
A
prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos
filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a alguns meses; prova
irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de
várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito
com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a
irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo.
(ASSIS,
M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992)
Obra
que inaugura o Realismo na literatura brasileira, Memória póstumas de Brás
Cubas condensa uma expressividade que caracterizaria o estilo machadiano: a
ironia. Descrevendo a moral de seu cunhado, Cotrim, o narrador-personagem Brás
Cubas refina a percepção irônica ao:
A)
acusar o cunhado de ser avarento para confessar-se injustiçado na divisão da
herança paterna.
C)
considerar os “sentimentos pios” demonstrados pelo personagem quando da perda
da filha Sara.
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