Literatura infantil com protagonistas negros abre novos
horizontes
Para pesquisadora, obras que extrapolam o racismo são
fundamentais
Publicado em 20/11/2021 - 10:18 Por Daniel Mello - Repórter
da Agência Brasil - São Paulo
Publicados por pequenas editoras, selos independentes e até
grandes casas editoriais, livros infantis com protagonistas negros, escritos
por autores não brancos, são um segmento consistente no Brasil atual. “A gente
tem muita oferta”, afirma a pesquisadora e blogueira Luciana Bento (foto em
destaque), especialista no tema.
Segundo Luciana, um dos fatores que elevaram a produção
desse tipo de conteúdo foi a inclusão do estudo das culturas afro-brasileiras
no currículo escolar, definida por lei, em 2003. “Tivemos um boom de
publicações com personagens negros”, afirma, ao comentar o impacto da medida.
Proprietária da Africanidades, livraria especializada em
autores negros, Ketty Valêncio confirma que há não só um bom número de títulos
disponíveis, como publicações que atraem cada vez mais o interesse. “É um mundo
muito rico, e tem muita gente procurando”, destaca. É um momento que abre
oportunidades que ela mesmo não teve. “Eu penso muito na minha infância. Minha
introdução à literatura foi através dos itãs dos orixás. Minha geração
desconhecia literatura infantil com recorte étnico-racial.”
Identidade e possibilidades
O contato com os itãs - contos tradicionais da cultura
ioruba - ajudaram a abrir as perspectivas de Ketty quando ainda era criança.
“Eu me reconhecia nelas, mulheres pretas incríveis”, diz, sobre impressões
deixadas pelas histórias das orixás femininas que conheceu nessa época. É
justamente uma ampliação dessa oportunidade que ela enxerga nas infâncias
negras no Brasil de hoje. “A literatura infantil é o início de um acolhimento,
porque ali você trabalha diversas questões que vão ocorrer na sua vida adulta:
autoestima, pertencimento, orgulho da sua história, de onde você vem, da sua
ancestralidade.”
Pensando nisso, a professora e pesquisadora Evelin Oliveira
se esforça para trabalhar histórias com esse recorte na escola onde dá aulas
para crianças, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. “No meu planejamento anual,
trabalho desde o primeiro dia a vertente da diversidade étnico-racial, com foco
na construção dessa identidade. Porque são crianças de 4 a 5 anos e, neste
momento, a diversidade precisa estar presente o ano inteiro e não somente em
novembro”, afirma, sobre o processo educacional que desenvolve, levando,
inclusive, jogos que ela mesmo cria.
Histórias e tradições
Os quebra-cabeças e os jogos de memória são construídos com
elementos tradicionais de culturas africanas, como os adinkras – símbolos que
remetem a conceitos e histórias. Segundo Evelin, o contato com essas
referências ajuda as crianças a estabelecer a própria identidade.
“Principalmente as crianças negras, que não se enxergam enquanto negras. Se tem
uma criança com pele mais escura, tem aquela pequena discriminação que precisa
ser trabalhada em sala de aula”, ressalta, a partir de sua experiência como
educadora.
"O passado é uma forma de abrir a conversa com as
questões do presente", relata em seu trabalho o historiador e escritor
Allan da Rosa. “Pensar família, abrir o linguajar, viajar, mas com as unhas
agarradas no tempo da molecada”, diz o autor, sobre os sentimentos durante o
processo de construção do livro Zumbi Assombra quem?, publicado em 2017.
O livro surgiu da conversa com uma colega que teve
dificuldade em contar a trajetória do líder quilombola Zumbi dos Palmares a um
grupo de jovens em um festival literário. “Ela disse que a oficina tinha sido
terrível, que ficou uma hora com a molecada, que falou de Zumbi. A molecada
ficou com nojo, disse que zumbi era um cadáver que anda, que assombra. E ela
não conseguia lidar com isso”, lembra.
A partir da provocação, Rosa resolveu trabalhar com
fantasmas reais e imaginários que rodeiam crianças e adolescentes, mostrando
como surgiu a ideia do livro. “Na hora, eu brinquei e disse que Zumbi assombra
mesmo os fazendeiros, os racistas", disse o escritor, trazendo uma
desconstrução do imaginário feito por filmes e jogos da cultura de massa.
De acordo com o autor, o diálogo com o público jovem não
torna o livro necessariamente infanto-juvenil. “Eu o considero um livro para
adultos e crianças, poroso. Cada linha ali tem uma razão, um pulso, que é ser
lido em voz alta com a molecada ou com os coroas, nossas pessoas mais velhas.
”Para Rosa, o projeto é uma publicação para ser lida de forma compartilhada por
duas pessoas, ritual que repetiu todos os dias durante a infância do filho,
hoje com 14 anos.
Obras que extrapolam o racismo são fundamentais, na opinião
de Luciana Bento. “Poder ver histórias em que as crianças negras têm famílias,
sonhos, que não estão sofrendo, é muito importante nesse lugar que a gente esse
encontra, e nesse espelho em que vivemos nossa realidade”, diz a pesquisadora.
A possibilidade de ser retratada passa até por coisas
simples, como no caso de sua filha mais velha, Aisha, que tem 9 anos e gosta de
encontrar o próprio nome, de origem africana, nas histórias que lê. “Meninas
negras que são cientistas, que tem orgulho do seu cabelo, que fazem várias
coisas e conseguem se ver como possibilidade de existência.” São horizontes que
se abrem pelas várias histórias.
Livros que precisam, segundo Allan da Rosa, trazer os
conflitos e contradições do mundo. “Não fugir das nossas contradições é uma
marca da nossa ancestralidade, da epistemologia ancestral, da encruzilhada, a
roda com a sua abertura. Muito mais do que uma linha que só vai para frente, do
que o maniqueísmo. Eu vejo isso na nossa história estética”, diz o escritor.
0 Comentários